RELATOS DA MADRUGADA: AS CRIANÇAS


Relato enviado por Anônimo, em 27/10/2016.

"Boa Noite,

Primeiro gostaria de dizer que adorei o site e deve ser a primeira vez que compartilho esta história, que corre em minha família a gerações.

Tenho medo que me descubram, pois trata-se de um mistério e de certa maneira, uma vergonha.

Venho de uma família tradicionalíssima, compartilhar nossas lendas e mistérios com estranhos é tão vergonhoso quanto ser preso ou falhar em manter um relacionamento duradouro.

Bem, direto ao assunto.

Minha tataravó era uma índia chamada Jandira. Dizem que ela se perdeu e foi acolhida pela família de meu tataravô, naquela época ainda um jovem. Apaixonaram-se, casaram-se e construíram sua casa, um casebre de madeira no mesmo terreno da família.

Ajudavam na igreja e trabalhavam a terra para seu sustento.

Era o começo do século XX e mesmo após quase 20 anos de casados eles não tinham filhos.

Foi mais ou menos por esta época, creio que no ano de 1910 em que As Crianças apareceram.

Não se sabe como se decorreram oficialmente os fatos, contudo a lenda afirma que, durante uma terrível tempestade, daquelas de não se enxergar nada além de uma torrente dilúvica de chuva, elas apareceram após um estrondo.

Era madrugada e a cidade toda acordou. Era como se um relâmpado tivesse caído no meio da cidade, contudo não houve luz, apenas um estrondo e tremores de terra.

O Padre da cidade quase infartou pois a intensidade do som foi maior ao lado de sua residência, adjascente a Igreja da cidade e ao pequeno cemitério.

Munido de uma lamparina, uma espingarda e um guarda-chuvas o velho padre enfrentou o medo e a chuva em busca do desconhecido.

Ao abrir o velho portão de ferro do cemitério, fonte do grande estrondo, o pobre Padre quase borrou as calças ao notar o aparecimento de um sumidouro no meio do terreno. Túmulos, esqueletos e caixões se misturavam a lama que transformava a cratera numa poça profunda. Por alí perto ele ouviu um choro fraco. Vinha de um velho caixote de madeira apodrecido, similar a um caixão improvisado, que estava jogado num canto, meio coberto de lama.

Ele iluminou as frestas e pode perceber pequenos olhos brilhantes e, fazendo um pouco de esforço enquanto suas roupas se enchiam de lama, o velho Padre levantou o caixote e viu que aquela caixa apodrecida acolhia um casal de crianças imundas e que não deviam ter mais que cinco ou seis anos de idade.

Ele os acolheu e os protegeu durante a noite.

Passada a tempestade veio a bonança e com as primeiras luzes do sol todo a população daquela pequena cidade no interior do Paraná, vieram ter com o Padre e ver o estrago da tempestade.

Foi então que ele lhes apresentou as crianças.

Todos, inclusive meu tataravô e sua esposa, ficaram chocados com a aparência das crianças.

Elas eram pequenas, vestiam túnicas dos coroinhas emprestadas pelo Padre. Estavam limpas pois o bom velhinho havia cuidado disso e de tentar alimentá-las, porém negaram-se a comer ou beber qualquer coisa.

O sumidouro, o estrondo, o aparecimento das crianças, tudo era tão estranho, porém nada se comparava em estranheza à aparência das crianças.

O menino era mais alto e um pouco mais forte, a menina, mirrada e com a barriga inchada, expondo as costelas. Ambos cadavéricos, de uma cor doentia. Um branco leitoso e levemente acizentado, quase como a cor de alguns cadáveres. Os olhos, enormes! Eram os maiores olhos que as pessoas daquele lugar já tinham visto. Eram olhos azuis, mas não um azul belo e cintilante como uma água do mar do Caribe. Eram de um azul escuro e profundo, como os abismos do Oceano, dando-lhes uma aparência ainda mais esquisita.
Suas cabeças eram inchadas, maiores que de crianças normais e tinham os cabelos brancos, finos e ralos, chegando à linha da cintura na menina e na altura dos ombros no menino. Com muito custo o médico da cidade, cujo nome não revelarei aqui pois uma busca pode levar a seus parentes e a curiosos perguntando sobre essa história o que poderia levar até mim, examinou-os e notou que eles tinham a pele muito fria, no limite da hipotermia, estavam mal-nutridos e tinham dentes-de-leite de um formato dos mais exóticos. Eram dentes esparsos, pequenos, mal formados, quase como dentes de peixe, ou melhor, de uma piranha, mas o médico afirmou que não poderiam nos fazer mal.

Todos estavam chocados! Ninguém sabia como eles chegaram até alí, se seus pais morreram quando o sumidouro se abriu, se foram deixados alí naquela noite chuvosa por causa de sua aparência e quase morreram como o assustador fenômeno natural que os deixou naquelas condições. Nada!

Os dias seguiram e as crianças continuaram sob os cuidados do Padre.

Todos trabalhamos no sumidouro, jogando terra, recontando os mortos, recolocando-os em seus caixões e promovendo novos enterros junto à prefeitura e ao Padre.

As crianças estavam dando trabalho! Não bebiam água, nem suco, nem vinho, nem nada! Também se recusavam a comer qualquer coisa cozida ou nutrida com legumes e cereais. Apenas carne crua ou quase crua e nada mais!

Conversavam entre si numa língua que o Padre, conhecedor até de grego e latim, não tinha a mínima idéia de a que povo pertencia.

Foi então que meus tataravós fizeram a proposta: Queriam adotar as crianças.

O Padre aceitou pois queria estar livre daquele fardo. O prefeito concordou pois não achava que a polícia acharia os pais das crianças e também queria livrar-se da responsabilidade.

Então foram registradas, como se fossem filhos legítimos, pelo tabelião. Perderiam seis anos de idade, mas não levantariam questões em alguns anos. Apenas aparentariam mais idade, infelizmente, porém não haveriam muitos questionamento sobre a natureza das crianças... apenas sobre sua aparência.

Deram-lhe nomes. Arlindo e Alcina. Arrumaram-lhes seus cabelos e vestiram-nos com roupas de crianças normais, porém destacavam-se de qualquer outra crianças. Minha Tataravó se identificou demais com eles. Crianças de outro mundo perdidos numa outra realidade.

O tempo passou e as coisas não ficaram mais fáceis. 

As crianças continuavam agressivas, recusavam-se a ficar vestidas, derrubavam móveis, agrediam (muitas vezes violentamente) os animais domésticos, falavam apenas em seus idioma gutural e particular e apenas aceitavam comer carnes e peixes crus ou extremamente mal passados.

Meu Tataravô queria devolvê-los mas minha Tataravó teve a idéia de levá-los ao Padre para o batismo! Talvez após o sacramento as crianças perderiam esse seu lado "diabólico".
Dizem que o dia do batismo foi terrível. As crianças se debateram, espernearam, agrediram ao Padre, aos meus avós e a quem tentava segurá-los. Muitos diriam que o que ocorreu alí não foi um batismo e sim um exorcismo.

Findo o batismo as crianças se apaziguaram. Até demais.

Voltaram para a casa sem falar e deitaram-se em suas camas sem protestar. Naquela noite ocorreu algo que faria com que esse caso fosse definitivamente enterrado na memória da cidade. Algo que até hoje as pessoas daquele lugar insistem não reconhecer, em não lembrar e quem, por um acaso acredita na história, prefere não contar pois não existe explicação plausível que justifique o que teria se passado à seguir.

Era uma bela noite de Lua Cheia. Todos dormiam e o vento frio do começo de inverno começava a fazer com que as pessoas se embrulhassem em seus cobertores e esquecessem de qualquer coisa que não fosse uma noite de sono aconchegante e quentinha.

Então novamente ouviu-se aquele estrondo como o de um Trovão vindo do lado mais alto da cidade, próximo à igreja. Naquela noite ninguém teve coragem de sair de casa pra ver o que acontecia. Todos se acovardaram e, debaixo de seus cobertores, apenas ouviram a loucura que parecia acontecer lá fora.

Primeiro foram os gritos, quase uivos, que pareciam de um grande animal com dor. Depois ouviram-se dois gritos distintos, depois três... logo parecia que uma alcatéia de cães selvagens havia tomado a cidade. Pelas ruas ouviam os passos rápidos de uma trupe assustadora percorrendo as esquinas. Muitos juravam ouvir vozes que falavam numa língua estranha, muito parecida com a das crianças.

Ouviram-se mais gritos, risadas, batidas fortes como se aquelas coisas lá fora testassem a resistência de algumas portas e janelas e depois de um tempo ouviu-se o que parecia ser um tambor.

Uma batida, duas três. Logo havia toda uma batucada profana como dos Terreiros de Umbanda invocando suas entidades.

Depois ouviu-se um pandeiro, flautas e toda sorte de instrumentos. As vozes pareciam cantar uma canção do inferno! Sons guturais, misturados com aqueles uivos assustadores e risadas sinistras! Dizem que tudo aquilo durou umas poucas horas e que ainda muito antes do sol nascer a cidade voltara ao silêncio mortal de uma população aterrorizada. Uns juraram que enquanto o galo cantava ainda era possível se ouvir os instrumentos e as risadas ecoando ao longe.


Com a segurança e proteção do Sol, o povo saiu as ruas para ver o estrago. E era enorme!

Galinhas destroçadas como se tivessem sido devoradas vivas, cães e gatos brutalmente mortos e alguns parcialmente devorados. O cemitério estava com um novo sumidouro, desta vez ainda mais profundo que, posteriormente, descobriu-se levar a uma rede de túneis e cavernas. O cemitério foi realocado e o lugar foi selado para que nunca ninguém explorasse estas cavernas macabras. Parecia conveniente na época, pensar que aquelas criaturas viram dalí. Seres das cavernas, Intraterrenos. 

O mais triste de tudo foi achado na igreja. O Velho padre, morto, duro feito pedra, caído em frente a pesada porta de madeira que se encontrava aberta. Em suas mãos a bíblia e um crucifixo. Para aquelas pessoas ele havia visto o diabo e o estado da igreja, da sacristia e do claustro indicavam esta possibilidade.

Tudo estava revirado ou destruído. O estoque de alimentos espalhado ou roubado. Todos choraram e lamentaram a morte infeliz do velho e amado Padre porém meus tataravós sofreram mais.

As janelas do quarto das crianças estava aberta e, tudo indicava que deliberadamente elas haviam fugido e se juntado àquela trupe demoníaca.

Passados sete dias do acontecimento, no meio de uma madrugada gélida, batidas fracas na porta dos meus avós os fizeram acordar. Ele, assustado, pegou a espingarda e abriu o ferrolho que trancava a porta. Era Alcina! Ela estava suja de barro e de um líquido que parecia sangue e fedia à carne podre.

Deram-lhe banho, roupas e comida. Minha Tataravó estava muito feliz por ter sua menina de volta, mas, infelizmente o resto da cidade não compartilhava deste amor. Alguns falavam mal pelas costas, outros conspiravam em roubar a menina durante a noite e alguns, mais cruéis, até cogitavam trazer de volta a Santa Inquisição e queimar a menina como Bruxa ou como algum tipo de demônio. Ligavam os acontecimentos e atribuíam todos os problemas que aconteceram naqueles meses ao aparecimento das crianças. Logo as coisas ficaram insustentáveis.
Pouco mais de um mês depois de todo aquele caos noturno, a cidade parecia estar se estabilizando e os vizinhos pareciam estar fingindo esquecer da presença de Alcina alí. Ela não saia de casa, mas parecia mais disposta, alegre e começava a chamar minha avó de "mamá". Então, sem aviso, no final de uma tarde nebulosa, Arlindo voltou. Estava num estado pior que Alcina naquela madrugada gélida. Muitos moradores batiam furiosamente à porta enquanto minha avó tentava dar-lhe um banho e meu avô estava no limite, pronto para usar a espingarda caso tentassem invadir a residência.

Depois de muita conversa, eles de um lado da porta e meu avô do outro, as coisas pareciam ter ficado mais tranquilas mas Arlindo estava doente.

Os dias se passaram e ele enfraquecia, estava aceitando sopa e pão e chorava muito. Alcina parecia tentar consolar o irmão porém ele a olhava com um olhar decepcionado, como se tivesse sido traído ou abandonado pela irmã. Logo as pessoas voltariam a bater na porta.

Nos dias que se seguiram velhos e crianças começaram a ficar doentes. Vômitos, diarréia e culpavam nossa família pela doença. Quando a primeira criança morreu vítima dessa praga, meus avós já haviam partido pra Maringá, se hospedando em casa de parentes.

Pouco tempo depois Arlindo faleceu. Depois de sua morte Alcina mudou completamente.

Seus cabelos tomaram força e ganharam um lindo tom louro, sua pele branca ganhou tons rosados e corados e sua alimentação melhorou drasticamente, dando-lhe um corpo forte e saudável de criança e, após um ano fugidos de sua cidade, meus avós resolveram retornar para sua casa.

Os dentes de Alcina estavam caindo e não tinham mais aquela aparência assustadora então, quando eles mentiram para seus amigos e vizinhos, dizendo que o ela era Virgínia, filha de primos distantes que haviam falecido, eles acreditaram. Era outra criança! Bonita, mais forte, com grandes olhos azuis brilhantes. Jamais diriam que era a mesma criatura desnutrida e de cabeça bulbosa que havia aparecido a um ano atrás na cidade junto com seu irmão portador da praga.

Arlindo morreu e levou consigo quase um terço da cidade. O cemitério novo já precisava ser expandido.

Anos depois meu tataravô comprou um bom terreno em Araraquara, em São Paulo e mudaram-se.
Alcina, ou Virgínia, casou-se, teve filhos e morreu com cerca de 70 anos sem jamais contar a ninguém sobre quem eram seus verdadeiros pais ou de onde ela viera. Esse foi um mistério que levou pro túmulo. Arlindo também nunca deu pistas e tudo o que se sabe até hoje sobre sua origem são causos e lendas de uma família que, muitas vezes, prefere achar que foi uma história inventada pelo meu tataravô pra justificar a fuga da cidade natal, assim como uma possível traição que teria gerado essa menina. Ninguém sabe o que realmente aconteceu alí.

Não tenho provas dessa história, mas posso lhe enviar uma foto de Alcina e outros primos quando ela tinha sete ou oito anos. Posso dizer que ela existiu e, como meus tataravós não tiveram, supostamente, filhos biológicos, Alcina é minha bisavó de sangue, ou seja, de qualquer lugar que ela tenha vindo faz como que eu me torne seu herdeiro de sangue!

Das gerações que se seguiram, ocorreram alguns problemas de má formação, natimortos ou microcefalia, porém nada que tivesse uma conotação sobrenatural. 

Bem, não irei me alongar mais e me despeço aqui. Espero que tenha sido uma boa história e, caso deseje aquela foto, entre em contato!

Um grande abraço,
"Anônimo".





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